Islão, violência e a democracia. Proposta para Debate


O texto que se segue foi escrito por mim em 2004 e saiu no Jornal Semanário Embondeiro na altura.
Hoje republico-o como forma de despoletar um debate.
Aí vai ele:


Nos últimos anos, tem havido um intenso debate sobre a compatibilidade entre o Islão e a Democracia. Alguns cientistas políticos como Samuel Huntington e seus mais chegados discípulos aventaram desde os tempos, a conhecida teoria do the clash of civilizations argumentando que, com o fim do socialismo soviético e da rivalidade este/oeste (o fim de história, segundo Fukuyama), Huntington só via a emergência de conflitos a partir de um choque de civilizações, insinuando então o diferendo entre o mundo islâmico e a civilização Capitalista do Ocidente.

Todavia, se actualmente nos atentarmos aos conceitos e fundamentos morais básicos do Islão, notaremos que eles baseiam-se na igualdade, justiça e no consenso – e não pode haver melhor base ideológica para a democracia do que um sistema de ensino que promova esses conceitos e valores.

A questão que se pode colocar porém é, porque é que, a despeito desses valores, não reinar no mundo islâmico uma cultura de paz democrática.

Alguns analistas afirmam que, se a democracia não conseguiu vingar em grande parte do mundo islâmico não foi por causa do Islão, mas apesar dele.

Na verdade, aprofundando o argumento que os factores sociais, políticos e económicos é que são determinantes, e não a religião, poder-se-ia mesmo afirmar que esses factores foram também responsáveis pela tradição dos primórdios da governação islâmica, na era dos Khulafa-i-Rashidun (Califas Piedosos), tanto quanto as qualidades sublinhadas pelo Islão.

Apesar de os muçulmanos acreditarem que o Islão veio para toda a humanidade, foi fundado como uma religião árabe e absorveu muitas das normas de governação prevalecentes na sociedade árabe da época. O Sayyid, ou líder da tribo, era eleito – não era um cargo hereditário nem de nomeação – e todas as decisões importantes, como a guerra, eram tomadas por consenso. O carácter democrático dos primórdios dos governos islâmicos dos Khulafa-i-Rashidun era tanto consequência disto como dos princípios indubitavelmente igualitários do Islão.

Não seria honesto da minha parte não admitir que o debate sobre o Islão e a democracia é algo que considero preocupante e mesmo frustrante. Recentemente, tem-se cada vez mais a impressão que quando o Ocidente, particularmente o mundo anglo-saxónico, fala de «democracia» está a referir-se a um governo que por ele tem simpatia e que não aprecia os seus opositores ou inimigos, e que o factor da aprovação popular não tem realmente grande importância.

Assim, os movimentos de Lech Walesa, na Polónia, contra Ceauscescu, na Roménia, e os acontecimentos da Praça de Tianamen foram definidos como “pró-democráticos”, enquanto movimentos como a revolução iraniana, que destronou o Xá Reza Pahlevi, que estava tão próximo da democracia, não o foi. Da mesma forma, a vitória eleitoral da FIS na Argélia não gerou nenhuma declaração de regozijo – ao contrário do golpe militar que negou o veredicto popular, visto como um desenvolvimento que, de alguma forma, favorecia a causa da democracia.

Por outro lado, existiram, e ainda existem, muitos governos não democráticos no mundo muçulmano que não receberam qualquer crítica do Ocidente – enquanto fizeram a sua vontade, como o Paquistão de Musharaf. Assim, a democracia enquanto filosofia política ocidental é vista como tendo duas faces ou, ainda pior, como um sistema que se baseia tanto na honestidade intelectual como na actividade de Al Capone, o famoso gangster de Chicago.

Não é assim que o mundo islâmico vai ser persuadido a seguir a via democrática. Mais recentemente, depois do 11 de Setembro, a grande preocupação com a democracia no mundo islâmico assumiu uma outra dimensão, igualmente irreal.

Não posso deixar de ter a sensação que essa grande preocupação se baseia na suposição que quando o mundo muçulmano estiver no mesmo “comprimento de onda” do mundo ocidental, partilhará a mesma visão sobre todas as questões, desaparecendo assim as divergências ou sendo resolvidas de forma não-violenta.

As diferenças que a democracia resolve no seu seio são de natureza interna e não externa. Assim, enquanto as diferenças entre ideologias políticas podem ser contidas e resolvidas pelas instituições democráticas, o mesmo não se aplica às divergências externas como a ocupação territorial por poderes externos ou a negação do princípio básico e fundamental da auto-determinação. Vide a resistência iraquiana.

As diferenças que hoje vemos entre o Islão e o Ocidente radicam no que se passa na Palestina, no Iraque ou na Tchéchénia e não em qualquer elemento da filosofia islâmica. Nada disto significa que a democracia não seja algo a que o mundo islâmico não deva aspirar. Certamente que é, mas para o próprio bem do mundo islâmico e não porque poderá diminuir as diferenças entre o Islão e o Ocidente. O maior impulso que o Ocidente poderia dar ao desenvolvimento da democracia no mundo islâmico seria apoiar causas democráticas.

Todas as grandes fés do mundo, incluindo o Islão, alastram pelo exemplo, da mesma forma que para a democracia se expandir, terá que seguir o mesmo caminho. Tem que provar que os valores que proclama não desaparecem quando são os amigos que os violam e que esses valores têm um objectivo maior do que servirem de bastão para bater nos inimigos, reais ou imaginários. E, paralelamente a uma ordem política internacional mais justa, terá que haver uma ordem económica mundial mais justa.

A democracia não pode, por um lado, orar no altar de um sistema económico de laissez faire, enquanto, por outro lado, concede grandes subsídios aos seus próprios agricultores e nega aos países em desenvolvimento o acesso aos seus mercados, para que aí possam vender os seus bens. Para além disso, a questão do alargamento da educação e da reforma agrária deve ser muito mais realçada nos países islâmicos do que a organização periódica de eleições, de duvidosa validade. As pessoas não lutarão pelos seus direitos enquanto não souberem quais é que eles são e, igualmente importante, quais os deveres e as responsabilidades que esses direitos acarretam.

Talvez com a educação venha a consciência de que a democracia não é um sistema ocidental, que é simplesmente o processo através do qual o poder é exercido por um maior número de pessoas e, nessa medida, é um inexorável processo histórico. Do outro lado da grande linha divisória, porém, deve existir a consciência de que nem todas as sociedades seguirão o mesmo percurso nesta inevitável revolução do poder e de que o produto final não será sempre exactamente o mesmo.

Comentários

Egidio Vaz disse…
Na verdade, o objectivo aqui consiste em conciliar o maior feixe de interesses possíveis. Para os que procuram informação diária, análises, estudos académicos, trabalhos e livros. Um pouco de tudo num blog humilde.
As fotos são para distrair olhos cansados de ler letras.
Obrigados pela força que me dá.
Continuarei a melhorar
Egidio Vaz disse…
Obrigado Tina, queria dizer

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