O papel das organizações regionais na resolução de conflitos

O actual enfoque da comunidade internacional no reforço das capacidades regionais de prevenção e resolução de conflitos em vários pontos do globo deriva de uma multiplicidade de factores.

O novo contexto pós-Guerra Fria
Em primeiro lugar, verifica-se uma alteração do tipo predominante de conflitos desde o fim da Guerra Fria, com uma proliferação de conflitos intra-estatais, emergindo com novos contornos de sociedades multiétnicas e multiculturais, onde a crise de soberania em muitos Estados conduziu a lealdades mais estreitas e exclusivas, ou seja, em torno da língua, da religião, da etnia, de clivagens regionais ou outros elementos constitutivos da sua identidade. A mudança na natureza dos conflitos originou, em vários casos, uma situação generalizada de desordem em diversos países e regiões, em que se tornou impossível, por um lado, manter uma gestão permanente e prolongada dos conflitos sem que se procurem soluções duradouras e, por outro lado, responder de forma eficaz à emergência destes conflitos sem equacionar devidamente as suas ramificações, interligações e impacto ao nível regional. Em segundo lugar, o pensamento teórico sobre as estratégias de prevenção de conflitos salienta actualmente a importância de abordagens integradas, que tenham em atenção as causas e sintomas do conflito, o envolvimento de diversos actores ao nível local, regional e internacional, a existência de questões transversais como o comércio ilícito de armas e a exploração de recursos naturais, o terrorismo e o crime organizado.
Ao nível internacional, apesar de as Nações Unidas reconhecerem no Capítulo VIII da sua Carta constitutiva o papel das organizações (sub)regionais na manutenção da paz e da segurança, é só a partir de 1992, com a Agenda para a Paz do Secretário Geral Boutros Ghali, que a ONU afirma a responsabilidade primordial das organizações regionais nesta área e o seu melhor posicionamento para intervirem, derivado em grande parte de um conhecimento e compreensão mais profundos das causas e natureza dos conflitos. Em termos práticos, porém, a acção das organizações regionais tem sido condicionada pelas próprias limitações dos processos de integração regional em continentes como a Ásia ou a África.

Ásia: entre gigantes e soberanias
As organizações de integração regional no continente asiático estão essencialmente vocacionadas para as questões económicas e comerciais, sendo a Associação dos Países do Sudeste Asiático (ASEAN) aquela que regista o maior grau de cooperação. A formação da organização em 1967 foi um factor importante de incentivo à paz entre Estados com uma história conturbada de disputas territoriais, mas o facto de estar encravado entre dois gigantes e registar enormes diferenças económicas, políticas e culturais entre os seus membros tem contribuído para minimizar o seu papel em termos de cooperação política e militar. A mediação nos Acordos de Paz de Paris sobre o Cambodja (em 1991), a cooperação com a China para a resolução de disputas relativas ao mar do Sul da China, ou o trabalho desenvolvido na área do desarmamento e proliferação nuclear, são alguns dos exemplos positivos. Apesar de a ASEAN estabelecer como um dos seus objectivos a promoção da paz e estabilidade regionais, o diálogo sobre segurança desenvolve-se sobretudo ao nível informal ou através do Fórum Regional ASEAN (ARF) e apenas nas questões interestatais, prevalecendo o princípio da não-interferência nos assuntos internos – que é o plano onde se desenrolam actualmente a maior parte dos conflitos (p. ex. os Tigres Tâmil no Sri Lanka, a região de Mindanao nas Filipinas ou as questões de Aceh e Irian Jaya na Indonésia).
Com efeito, a região tende a encarar os conflitos em torno de questões étnicas, religiosas, separatistas, de formação do Estado ou de crises de governação, como assuntos puramente internos, evitando disputas políticas que poderiam enfraquecer, ou mesmo deitar por terra, os esforços de integração regional nas outras áreas. Um dos maiores obstáculos à prossecução de estratégias regionais de prevenção e resolução de conflitos está ligado à questão dos poderes regionais ou hegemónicos, uma vez que a existência de várias potências políticas e até nucleares (China, Índia,
Paquistão, Coreia do Norte) diminui o interesse numa maior integração regional em áreas que transcendam a cooperação económica.
A ASEAN não inclui nenhum dos Estados referidos, existindo apenas um mecanismo de diálogo denominado ASEAN+3 que conta com a participação da China, Japão e República da Coreia. A China, em particular, assume uma posição de influência continental, sem abdicar de aspectos vitais da sua soberania em favor de estruturas supranacionais, ou permitir a ingerência em assuntos que considera do seu foro interno. Mesmo a Índia, pertencendo a um grupo regional do qual fazem parte Estados com os quais mantém uma animosidade histórica, encontra-se numa posição simultaneamente dominadora e isolada na região. Também a prevalência de regimes autocráticos e ditatoriais conduz a uma ausência de condenação de governos que possam desenvolver práticas não democráticas ou de violação dos direitos humanos, dando origem a uma situação de inércia, em que se privilegia a segurança dos Estados e dos regimes em detrimento da segurança humana.
Um exemplo paradigmático é o de Mianmar, que, apesar de várias pressões internacionais, foi admitido como membro da ASEAN em 1997, sem que até hoje se registasse qualquer tomada de posição relativamente à natureza do regime. O carácter intergovernamental dos vários órgãos da ASEAN (com excepção do Secretariado, praticamente sem poder politico) e o facto de todas as decisões serem tomadas com base no consenso, são factores que impedem uma abordagem mais pró-activa e o desenvolvimento de mecanismos formais de gestão de crises. Só na Cimeira de Bali, em Outubro de 2003, os Estados da ASEAN acordaram em integrar a noção de “paz democrática”, interligando pela primeira vez os processos democráticos com a promoção da estabilidade regional. Apesar da visão indonésia de uma “comunidade de segurança” ter ficado consagrada no texto final, a ideia de estabelecimento de um quadro regional de manutenção da paz – incluindo uma força militar própria preparada para integrar missões de paz – é algo que só se poderá vislumbrar num horizonte de longo prazo. Muito recentemente o atentado em Bali e a questão da luta contra o terrorismo vieram pressionar os Estados da ASEAN para uma maior cooperação nestas matérias, o que motivou a adopção de posições conjuntas e o reforço da cooperação em áreas como a partilha de informação ou o combate ao crime organizado. No entanto, continua a existir uma divisão artificial entre os vários níveis (local, nacional, regional) e dimensões da segurança, o que dificulta a existência de respostas eficazes perante ameaças não convencionais e transnacionais.

África: o caldeirão das experiências
O panorama de intervenção e mediação nos conflitos ainda prevalecentes em vários países e regiões de África registou, nos últimos anos, alterações importantes. Estas mudanças dizem respeito, em parte, a um reforço evidente das capacidades africanas de gestão e resolução de conflitos, quer ao nível continental – com a criação da União Africana (UA) e de organismos específicos –, quer ao nível regional, com o investimento na capacitação institucional e técnica de algumas organizações regionais cuja vocação era primordialmente económica, particularmente na África Ocidental (a Comunidade dos Estados da África Ocidental – CEDEAO) e na África Austral (a Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral – SADC).
Este reforço de capacidades deriva de um conjunto variado de factores internos e externos convergentes. Por um lado, a necessidade de responder a conflitos que têm marcadamente repercussões e interligações entre países, nomeadamente ao nível de alianças entre grupos rebeldes e de fluxos de armamento e de refugiados. São claramente os casos da África Ocidental e dos Grandes Lagos, onde a existência de vários conflitos com interligações importantes exige a implementação de abordagens regionais. Por outro lado, a perda de importância estratégica do continente africano, a existência de desaires marcantes na intervenção externa (como a Somália em 1992 ou o Ruanda em 1994) e a reorientação dos esforços militares para outros pontos do globo (como o Médio Oriente ou os Balcãs) vieram traduzir-se na relutância dos países mais desenvolvidos em correrem riscos de envolvimento directo em intervenções militares em África.

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