O Espectro de Saddam. Opinião de BSS
Este texto foi retirado daqui é da autoria de Baventura de Sousa Santos
O Ocidente não é um sistema político-cultural homogéneo. O que se exprime pela voz dos EUA e seus aliados (cada vez menos em número e com menor grau de convicção) é um Ocidente agonizante e sem Norte; incapaz de agir de acordo com os princípios e valores que pretendeu seguir e impor aos seus inimigos, parece-se cada vez mais com estes. Barbarizado na luta contra o que designa por barbárie, transforma-se no Mal que desenha os eixos do Mal, reduz a força dos princípios ao princípio da força e acaba por imolar-se no sangue que faz derramar.
O julgamento de Saddam Hussein ficará para a história como uma das mais grotescas caricaturas da justiça internacional. Apesar de ser apresentado como um exercício da justiça iraquiana, foi, de facto, um acto de justiça internacional selvagem, dirigido ao milímetro a partir de Washington e estritamente sujeito às conveniências políticas internas dos EUA. Da escolha dos crimes a julgar (havia muitos por onde escolher) à selecção dos juízes (e suas sucessivas substituições), às alterações oportunísticas do processo, à farsa do julgamento e dos recursos, à definição da pena e ao timing da sua execução, tudo foi decidido fora das paredes do tribunal e segundo critérios de investimento político que nada têm a ver com o Iraque. A "página nova" (sem Saddam) com que Bush quer começar 2007 não se refere ao Iraque mas ao Congresso norte-americano, a partir de Janeiro controlado pelo partido democrático. Foi uma justiça tanto ou mais circense quanto a justiça revolucionária que Saddam accionou (numa época em que era apoiado pelos EUA) para julgar os implicados no atentado à sua vida, os mesmos que agora serviram de fundamento à sua condenação. Onde está a diferença ocidental, do primado do direito e das garantias de uma justiça independente? Ou, perguntando como Bartolomé de Las Casas, ao questionar, no séc. XVI, as atrocidades cometidas pelos Espanhóis contra os índios da América: quem são afinal os bárbaros? Foi um julgamento-emboscada, uma justiça de vencedores, mas sem a dignidade da justiça de Nuremberga que julgou os crimes do nazismo. É que, ao contrário desta última, os vencedores só ficticiamente o são, no perímetro da pista de circo montada pelos grandes media ocidentais. De facto, estes vencedores estão historicamente derrotados e as consequências dessa derrota não se abaterão apenas sobre eles.
Cabe, pois, perguntar porque se perdeu a oportunidade de realizar um julgamento que dignificasse os julgadores e não os expusesse ao ridículo de serem menos dignos que o réu, um julgamento que reforçasse a justiça internacional e consolidasse o consenso global sobre a punição dos crimes conta a humanidade? Porque o Ocidente bushiano é constituído pela mesma fraqueza que comanda o extremismo do bombista suicida. Reclamando para si uma inocência sacrificial que o dispensa de distinguir entre culpados e inocentes, não tolera mediações, negociações, compromissos, enfim, a paz e, acima de tudo, não reconhece a dignidade do outro, do outro que, mesmo culpado, tem direito a um julgamento justo. Dessa fraqueza emerge o espectro de Saddam, o espectro da força que a derrota pode dar: a coragem de enfrentar um inimigo muito mais poderoso e a dignidade com que se assumem as consequências. Humilhado pela morte de um irmão (amado ou odiado) em dia sagrado, o povo muçulmano tem toda a razão para crer que o sangue derramado é inocente, tal como o do filho de Abraão festejado pelo Hajj. A vingança de Saddam é ele ser um ditador sanguinário com o direito, conferido pelos seus algozes, a ser reclamado por muitos como herói ou mártir. Por isso, não é por Saddam que os sinos dobram. Os sinos dobram pelo Ocidente bushiano.
O Ocidente não é um sistema político-cultural homogéneo. O que se exprime pela voz dos EUA e seus aliados (cada vez menos em número e com menor grau de convicção) é um Ocidente agonizante e sem Norte; incapaz de agir de acordo com os princípios e valores que pretendeu seguir e impor aos seus inimigos, parece-se cada vez mais com estes. Barbarizado na luta contra o que designa por barbárie, transforma-se no Mal que desenha os eixos do Mal, reduz a força dos princípios ao princípio da força e acaba por imolar-se no sangue que faz derramar.
O julgamento de Saddam Hussein ficará para a história como uma das mais grotescas caricaturas da justiça internacional. Apesar de ser apresentado como um exercício da justiça iraquiana, foi, de facto, um acto de justiça internacional selvagem, dirigido ao milímetro a partir de Washington e estritamente sujeito às conveniências políticas internas dos EUA. Da escolha dos crimes a julgar (havia muitos por onde escolher) à selecção dos juízes (e suas sucessivas substituições), às alterações oportunísticas do processo, à farsa do julgamento e dos recursos, à definição da pena e ao timing da sua execução, tudo foi decidido fora das paredes do tribunal e segundo critérios de investimento político que nada têm a ver com o Iraque. A "página nova" (sem Saddam) com que Bush quer começar 2007 não se refere ao Iraque mas ao Congresso norte-americano, a partir de Janeiro controlado pelo partido democrático. Foi uma justiça tanto ou mais circense quanto a justiça revolucionária que Saddam accionou (numa época em que era apoiado pelos EUA) para julgar os implicados no atentado à sua vida, os mesmos que agora serviram de fundamento à sua condenação. Onde está a diferença ocidental, do primado do direito e das garantias de uma justiça independente? Ou, perguntando como Bartolomé de Las Casas, ao questionar, no séc. XVI, as atrocidades cometidas pelos Espanhóis contra os índios da América: quem são afinal os bárbaros? Foi um julgamento-emboscada, uma justiça de vencedores, mas sem a dignidade da justiça de Nuremberga que julgou os crimes do nazismo. É que, ao contrário desta última, os vencedores só ficticiamente o são, no perímetro da pista de circo montada pelos grandes media ocidentais. De facto, estes vencedores estão historicamente derrotados e as consequências dessa derrota não se abaterão apenas sobre eles.
Cabe, pois, perguntar porque se perdeu a oportunidade de realizar um julgamento que dignificasse os julgadores e não os expusesse ao ridículo de serem menos dignos que o réu, um julgamento que reforçasse a justiça internacional e consolidasse o consenso global sobre a punição dos crimes conta a humanidade? Porque o Ocidente bushiano é constituído pela mesma fraqueza que comanda o extremismo do bombista suicida. Reclamando para si uma inocência sacrificial que o dispensa de distinguir entre culpados e inocentes, não tolera mediações, negociações, compromissos, enfim, a paz e, acima de tudo, não reconhece a dignidade do outro, do outro que, mesmo culpado, tem direito a um julgamento justo. Dessa fraqueza emerge o espectro de Saddam, o espectro da força que a derrota pode dar: a coragem de enfrentar um inimigo muito mais poderoso e a dignidade com que se assumem as consequências. Humilhado pela morte de um irmão (amado ou odiado) em dia sagrado, o povo muçulmano tem toda a razão para crer que o sangue derramado é inocente, tal como o do filho de Abraão festejado pelo Hajj. A vingança de Saddam é ele ser um ditador sanguinário com o direito, conferido pelos seus algozes, a ser reclamado por muitos como herói ou mártir. Por isso, não é por Saddam que os sinos dobram. Os sinos dobram pelo Ocidente bushiano.
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