CARTA ABERTA AOS IRMÃOS DE LUANDA

“Não faz muito sentido uma greve de fome num país onde a liderança não consegue alimentar todos seus cidadãos”


Caros irmãos,

Tenho seguido com muita apreensão as notícias que documentam o mal-estar da democracia no vosso país. Não é assim tão diferente do nosso caso, mas aqui pelo menos, os problemas estão bem documentados e ainda podemos nos dar ao luxo de chegar perto dos nossos dirigentes ou publicamente expressarmos sentimentos contra eles sem que tal atrevimento se traduza automaticamente em detenções. SIM, ocorreu nos últimos dias da anterior governação que três cidadãos foram judicialmente processados, acusados de crimes contra a segurança do Estado pelo facto de um deles ter expressado uma opinião critica em relação a governação e os outros dois terem publicado a carta em órgãos de informação.


Felizmente, no limiar da nova governação, um jovem juiz conseguiu rechaçar para bem longe os receios de um provável regresso da “lei da rolha” e da mordaça à liberdade de imprensa, de pensamento e de expressão. Ainda este ano entrou em vigor a lei do direito a informação, bastante esperada pelos moçambicanos para “testar” a vontade política do governo em contribuir para a boa-governação e promoção da transparência. Ora, estes pequenos ganhos não nos permitem afirmar que estamos no bom caminho. Pelo contrário, continuamos na cauda de muitos índices relativos aos direitos humanos e direitos de cidadania, no geral.


         A repressão às manifestações é uma realidade e já custou vida a três membros da associação dos trabalhadores regressados da antiga RDA, comummente conhecida por madjermanes
         Até dez pessoas morreram em manifestações de 5 de fevereiro de 2008 e 1-2 de Setembro de 2010 incluindo o menino Hélio, uma criança que na altura das conturbadas manifestações voltava da escola e foi vítima de uma “bala perdida”.
         A Polícia continua a cumprir ordens ilegais e a envolver-se em tentativas de repressão aos direitos de cidadania, inclusive a manifestação pública.

Aqui em Moçambique a manifestação não carece de autorização. Na prática não é o que acontece. Mesmo informando as autoridades, se estas não concordarem, as manifestações podem não acontecer. E se acontecerem, a Polícia pode agir.

Acompanho com preocupação as inúmeras detenções e assassinatos que ocorrem em Luanda e um pouco por toda Angola bem como a repressão às manifestações pacíficas. Recentemente, mais de 10 activistas foram detidos, acusados de tentativa de “rebelião e atentado contra o Presidente José Eduardo dos Santos”, a fazer fé nas várias fontes noticiosas que nos chegam de Angola e de fora de Angola.


Para começar, deixe-me dizer que estou preocupado com a situação e recebam desde já os meus cumprimentos de solidariedade, principalmente àqueles que injustamente sofrem privações de toda a ordem.
Porém, deixe-me tecer alguns considerandos críticos em relação a forma como estão a gerir a situação, tanto ao nível da comunicação, comunicação social bem como ao nível da estratégia de implementação.


         A percepção que tenho é de que em Angola, quem ousar criticar o governo é automaticamente detido e seviciado. É verdade?
         Segundo as fontes noticiosas, grupos de cidadãos sem ligação partidária estão se organizando para depor o actual governo e seu presidente da República. É verdade?
         Ainda segundo a percepção que tenho a partir das fontes que leio é que os insurrectos são maioritariamente jovens com ou sem instrução escolar, intelectuais, alguns dos quais pertencentes ao que chamam de “regime de Jose Eduardo dos Santos” tendo como principal epicentro Luanda. É verdade?
         A situação em Angola é de total fechamento à liberdade de expressão, pensamento, imprensa e criação. É verdade?
Bem, porque a resposta vai tardar em chegar, deixe-me à guisa de hipótese, assumir que tudo o que quero saber venha a confirmar-se.
Vocês estão a falhar meus irmãos. Na estratégia e na comunicação.
         Como foi possível deixar que as autoridades considerassem grupos de pacatos cidadãos descontentes como verdadeira ameaça ao regime e potenciais golpistas? Será que tratou-se do mero poder desinformador e propagandista do Estado?

Não, meus irmãos, vocês criaram este fantasma; esta crença, primeiro nas vossas cabeças e depois nas cabeças dos securocratas angolanos, na senda da Revolução Egípcia de 2011, também conhecida como Revolução de 25 de Janeiro.

Tudo começou com o sucesso das sublevações em Cairo, Tripoli e Tunis e consequentes “ensaios” em Khartoum, Nouakchott e Luanda. Está tudo documentado. Dos ensaios espontâneos, os “activistas” angolanos pensaram em conferir consistência ao movimento de base! A revolução não se imita meus irmãos. Faltou neste todo processo, que já dura quatros anos, um estudo sobre as condições concretas para a possibilidade de tornar efectivo o exercício dos direitos de cidadania em Angola e através dele lograr mudanças positivas.

Assumir que o descontentamento popular com relação as condições sociais e económicas fosse bastante para pôr em marcha tais movimentos emancipatórios constituiu o primeiro equivoco colectivo de todo empreeendimento. Faltou essencialmente uma base social ampla em todos estratos sociais ou no mínimo em estratos sociais dominantes bem como um consenso transversal com relação a estratégia a seguir. Aliás, a evolução da legislação impondo limites ao exercício dos direitos de cidadania incluindo manifestações e direito à expressão devia já ter despertado para a necessidade de mudança da estratégia.


José Eduardo dos Santos e o MPLA conhecem exactamente as suas forças e fraquezas bem como as forças e fraquezas do movimento oposicionista “civil”. Vocês meus caros conhecem as vossas forças e fraquezas e as forças e fraquezas do poder vigente? Em caso afirmativo, é a vossa luta congruente com as forças e fraquezas identificadas? Temo que não.

Ao nível da comunicação, é muito estranho que até agora não tenham sido capazes de fugir à ratoeira à que se expuseram tanto ao contexto como ao governo. Lembro-vos que o movimento contestatário surge ou encontra seu apogeu no auge das revoluções do norte de África entre 2011-12. Em Luanda, desde então, toda e qualquer movimentação “cívica” era associada a similares intenções. Logicamente que não deveriam esperar outra reacção de um estado assustado senão a repressão. O senso de oportunismo e consequente limitação da “luta ao marco da câmara” impediu-vos de negociar uma ampla agenda emancipatória onde todos saíssem beneficiados.

A avaliar por aquilo que se pode ver e ler na comunicação social angolana, parece-me que Angola é nos dias que correm um estado normal e calmo, para além, claro, dos activistas afectados e seus mais próximos que andam agitados!

O QUE PODE SER FEITO?
1.      Alargar a base social do movimento cívico angolano, para incluir vozes de classes sociais e profissionais diversos
2.      Renegociar os termos de luta e concentrá-la na necessidade de resgatar e alargar o cânone de participação através da extirpação de toda a legislação limitativa à participação política no quadro geral dos direitos de cidadania. A prioridade deve ser tornar razoável e apropriado o quadro legal que garante o exercício dos direitos da cidadania sem o qual o estado pode aproveitar-se dele para ainda aquecer a fornalha repressora, socorrendo-se exactamente das leis vigentes
3.      Ganhar novos aliados, principalmente nacionais

Ao nível de como as coisas estão, gostaria de recordar que nenhuma mudança é possível e sustentável sem o envolvimento do próprio regime. Tal implica envolver as instituições e não hostiliza-las ou autoexcluir-se ou agir em isolamento.

É que, devemos reconhecer uma coisa importante: a sociedade civil ou mais especificamente o activismo de rua perdeu espaço, perdeu o campo. Está na defensiva ou em “parte incerta”. E não existe nenhuma possibilidade para que a actual estratégia resulte em mobilizações de massa ou triunfe. É preciso então, encontrar os termos para uma trégua; trabalhar num outro e novo programa que permite a operacionalização de reformas necessárias.

E isto não se faz com greves de fome. Angola precisa de pessoas nutridas e com forças, principalmente quando estas têm comida para comer. Angola precisa que esta gente trabalhe para os famintos e pobres. Por isso, não concordo com a greve de fome de Luaty Beirão e seus colegas. Agora que Luaty está doente, desejo-lhe rápidas melhoras e apelo para que retome as refeições. Ele e outros activistas devem se concentrar em lutas possíveis de travar mas em bom estado de saúde e bem nutridos, sempre que puderem.


Digo isso não porque não entenda o sentido e o alcance da vida. É que, não faz muito sentido uma greve de fome num país onde a liderança não consegue alimentar todos seus cidadãos; onde crianças morrem desnutridas. Ou seja, se crianças e adultos inocentes e “inofensivos” morrem vítimas de fome ou consequências da fome não vejo como este mesmo governo pode “ceder” às exigências de seus inimigos em função de uma greve de fome! Onde vai buscar esta sensibilidade? Num país faminto, uma greve de fome dificilmente pode constituir uma arma efectiva de protesto. Entendam-me meus caros. Não estou aqui para menosprezar ou faltar a consideração de luta. É uma simples interpretação lógica. A fome não é um direito humano, tal como o direito a vida. Se milhares de angolanos (como moçambicanos) enfrentam o risco de fome, havendo pessoas que morrem por causa dela nos últimos 40 anos da independência, como pode a fome constituir arma para batalhas politicas quando o Estado, ele próprio falta este direito a tantos? Na óptica de um Estado faltoso, seria “mais um que não quer comer”. Estou simplesmente a levar até as ultimas consequências a minha interpretação, dentro de um contexto concreto.

Entretanto, olhando do outro prisma, dois factores, se calhar, podem ajudar a tornar a greve de fome numa arma eficaz: primeiro, a proeminência do individuo e a exequibilidade da “causa de pedir” e segundo, a pressão internacional. Para o caso angolano, a pressão internacional quase que não existe. A “causa de pedir” é exequível. Porém, a greve de fome não serve como acelerador ou termo de troca.

Um abraço fraterno meus kambas

Egidio Vaz, historiador | egidiovaz@egidiovaz.com | www.egidiovaz.com

Comentários

ELCAlmeida disse…
Viva; tomei a libetrdade de "roubar" este texto para o meu endereço Twitter (com imediata transposição para o Facebook). Cumprimentos

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