Contra o vício da "ancoragem" e do "ajustamento"
À MEDIDA que nos aproximamos a
data final para a entrega pela Kroll do seu relatório, noto sentimentos mistos
à volta da expectativa, todos apontando para um conflito emocional forte. É que
todos querem que o relatório satisfaça as suas expectativas. Está aqui um mau vício que nos apossa a todos
nós: cinismo e ausência total da confiança nas instituições. A começar pelos
contratantes até aos beneficiários, todos escondem o seu nervosismo atrás de
palavras vazias como “o relatório deve apresentar dados concretos”; “o
relatório deve explicar com clareza o destino dos dinheiros” ou “o relatório
deve ser consequente”. Ou seja, se antes o maior “sonho” era ver o governo a
ceder à pressão internacional em relação a auditoria, agora quer-se influenciar
no resultado da própria auditoria, ou seja, influenciar no conteúdo e até na redacção
do texto final.
Porque é que isso acontece?
Porque há muito que fazemos da incredulidade, da crítica inconsequente, do
partidarismo polarizador e de outros vícios da crítica não-superadora como
expoentes identitários de um activismo vibrante. É verdade que governo e seus
titulares são por definição, os suspeitos de costume e por isso merecedores do
nosso escrutínio e da nossa insistência na prestação de contas no quadro do cânone
democrático.
Dem algum momento, e de algum
lugar a esta parte, os moçambicanos foram e estão convencidos - não só pela
realidade que vivem mas também pela propaganda política multiforme – que o seu
governo e governantes são corruptos, o estado ineficaz e ineficiente, sistema
de justiça inoperante e tomado pelo crime organizado, daí não merecer confiança
por parte dos seus cidadãos. Sem querer discutir o mérito das premissas,
gostaria de dizer que na América, também é assim. No Reino Unido, também é
assim. Em Portugal, também é assim. Os políticos e suas instituições são as menos
confiadas de todas. Nos Estados Unidos a situação é tão similar que a nossa.
Ano passado, os americanos não confiavam “nem tão pouco” nas suas instituições do
estado, de acordo com a sondagem Gallup – uma empresa de pesquisa e consultoria
em análise de performance. O congresso, algo parecido com o nosso parlamento era
a instituição muito menos confiável enquanto a presidência posicionava-se no
meio. Os militares, igrejas e a Policia eram as mais credíveis na opinião dos
americanos. No Reino Unido, os médicos, professores e juízes eram os mais credíveis.
Até cabeleireiras eram mais credíveis que o governo. O governo e políticos no
geral posicionavam-se em último lugar, de acordo com a pesquisa da IPSOS MORI,
a segunda maior empresa de pesquisa de opinião no Reino Unido. Em Portugal,
desde 2011 que o governo é das instituições menos credíveis entre os cidadãos daquela
nação de acordo com as sondagens da CGI em colaboração com a Universidade de
Porto.
Ora, a diferença que existe entre
aqueles incrédulos cidadãos e nós é em primeiro lugar, na forma como o nosso
estado se relaciona com seus cidadãos e em segundo lugar, na forma como nós cidadãos
buscamos o entendimento dos assuntos do estado e através disso reagimos.
A mensagem que pretendo deixar
aqui é simples: enquanto o debate intelectual nacional basear-se nos vários preconceitos ancorados no cinismo
dificilmente poderemos marcar passo para a recuperação de uma atitude mais responsável
e sequente da nossa cidadania. Vejo três tipos de preconceitos que em comunicação
e na psicologia são tidos como perigosos para a formação de uma cultura de debate
público superador e na consolidação da nossa cidadania.
- O primeiro é o que em inglês se denomina por availability bias, ou seja, o preconceito (ou viés) da disponibilidade: em psicologia, o preconceito (ou viés) da disponibilidade é um atalho mental que se baseia em exemplos imediatos que chegam à mente de uma determinada pessoa ao avaliar um tópico específico, conceito, método ou decisão.
- O segundo preconceito ou viés é o que é conhecido por “heurística de simulação”: é uma estratégia mental simplificada, segundo a qual as pessoas determinam a probabilidade de um evento baseado em quão fácil é imaginar o evento mentalmente.
- O terceiro e o mais importante preconceito é o preconceito de ancoragem e ajustamento. É uma heurística psicológica que influencia a forma como as pessoas avaliam intuitivamente as probabilidades. De acordo com essa heurística, as pessoas começam com um ponto de referência implicitamente sugerido (a "âncora") e fazem ajustes para alcançar sua estimativa.
Para operacionalizar os três
tipos de vícios acima descritos, peguem em qualquer tema candente (dividas
ocultas, conflito armado) e olhem a forma como o debate foi conduzido e é
actualmente conduzido. Existe uma história de falhanços no nosso país.
Falhanços na justiça, falhanços nas negociações com a Renamo, falhanços nos
programas de desenvolvimento, falhanços na economia. A nossa referência psicológica,
para os desafios actuais são FALHANÇOS-essa é a nossa ÂNCORA. Dessa âncora,
fazemos ajustes para estimar o possível resultado de qualquer outro
empreendimento. Foi assim que prevíamos o falhanço das negociações por celular
entre o Presidente da República e Afonso Dhlakama. Foi assim eu prevíamos o
falhanço das tréguas militares, hoje prestes a serem definitivamente carimbadas
com o selo da Paz efectiva; foi assim que antecipamos o falhanço do SUSTENTA;
foi assim que os analistas antecipavam a venda do dólar a 100 meticais por cada.
Todavia, tudo o que antecipávamos nos últimos meses, baseando-nos na âncora do
falhanço, revelou-se falhanço de facto, para os vários vaticínios. E aqui está
o perigo dos vícios. Eles nos levam a descrença inútil, desengaja-nos da participação
pública e ainda pior, exclui-nos da participação. Está aqui a diferença entre a
nossa incredulidade e a dos outros.
Desta vez, vamos tentar aguardar
pelo relatório da Kroll, buscar o maior conhecimento possível sobre o seu conteúdo
e depois ajuizar. As antecipações que ouvimos, lemos ou vemos, são a revelação de
quem está interessado em validar o seu preconceito tirando proveito da ÂNCORAGEM
e do AJUSTAMENTO. Esse debate não é intelectual. É pseudodebate; é política; é
cinismo.
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