Pensamento Linchador I, ou em busca do Ponto de Arquímedes

Sobre a Situação dos Médicos em Moçambique
Ao longo do caminho para o serviço (de transportes públicos semi-coletivo) ia lendo o texto de Elísio Macamo com o título «à procura do ponto de Arquímedes: o descontentamento e a sua modernidade» publicado numa colecção de textos, fruto de um projecto de pesquisa dirigido por Boaventura de Sousa Santos e Maria Tereza Cruz e Silva. Nele, e citando Thomas Negel, questionava se era possível olhar de lado nenhum. Claro que Macamo se preparava para mais uma incursão crítica (no bom sentido) aos textos dos autores do livro.
Mas, há dado momento, verifiquei, espantado, diga-se, que todos os passageiros do «chapa» (transporte de passageiros semi-colectivo) também estavam a ler!
Um facto curioso foi que quando o cobrador viu-me a abrir a pasta e dela tirar um livro, ele, disfarçado, também pegou num embrulho de jornais publicitários de um grande e conhecido supermecado maputense e, miméticamente, começou a distribuir pelos passageiros. À dada altura, todos nós estávamos a ler. Fiquei satisfeito. Dois minutos depois, desci. A viagem continuou, não sabendo se, os meus companheiros de viagem também continuaram a ler ou não.
Voltando à questão de Negel, se era necessário ver de lado nenhum, recordei-me e muito animado, do debate televisivo ontem transmitido pela Televisão Stv, dirigido pelo Jornalista-Executivo Jeremias Langa. Nele estava o Doutor Momed Rafico, Presidente da Associação Médica de Moçambique, AMM, a dar a conhecer as principais conclusões que a Assembléia Geral da classe havia antes de ontem, 19 de Março tomado.
A análise que se segue centrar-se-a àquilo que chamarei de pensamento linchador do Jornalista Jeremias Langa (corporizando todos meios de comunicação social nacionais), bem como da maioria dos telespectadores (corporizando todos aqueles que puderam dar a sua opinião sobre o assunto) perante as decisões do Ministro da Saúde. Reorde-se da minha acepção de pensamento linchador: Um pensamento caracterizado pela busca forçosa de soluções à problemas cuja natureza desconhece. Esse conhecimento manifesta-se pelas seguintes iniciativas de acção: imputação causal, culpabilização, apelo à medidas radicais de roptura com a situação prevalescente. Todas elas embasadas pela ignorância ou sua apologia.
Factos
1. Entre os dias 7 a 9 de Fevereiro do ano em curso teve lugar em Maputo o Conselho Hospitalar dirigido pelo Ministro Ivo Garrido. Das decisões tomadas, constavam a da eliminação do tratamento diferenciado nos hospitais públicos, o que inplicava o encerramento de clínicas especiais bem como a obrigatoriedade da prestação de 40 horas semanais de serviço pelos médicos afetcos em hospitais públicos.
2. Socorreu-se, o Ministro, para o caso da última medida, o Estatuto Geral dos Funcionários de Estado no tocante ao horário laboral bem como a experiência externa quanto aos horários médicos.
3. A reacção dos médicos não se fez esperar. Protestaram algumas medidas, fruto da incompreensão dalguns pontos que constavam da circular que legalizava as decisões tomadas no Conselho Hospitalar.
4.Para tanto, convocou-se uma reunião com o Ministro da Saúde que, por sua vez esclareceu os pontos em dúvida. Afinal de contas, não se tratava necessáriamente de permanencer no Banco do Hospital das 7.30 as 15.30, mas sim de cumprir o tempo legalmente estatuído, que era de quarenta horas semanais. Até aqui, tudo estava bem, sem problemas.
5. Quanto ao encerramento das clínicas especiais, os médicos queriam saber se os motivos que estiveram na origem da sua criação já estavam sanados. Uma preocupação, quanto a mim, legítima, dado o carácter nobre da sua profissão, que é acima de tudo, velar pela saúde das pessoas. O Ministro disse que sim, e os médico disseram, OK chefe, que se encerrem amanhã mesmo...

A vez dos Linchadores
1. O Povo
A publicação da circular que dava conta das medidas acima afloradas veio avivar o “fogo” que há muito repousava comprimido dentro dalgumas mentes. É o “fogo” linchador, combustibilizado pela longa e dolorosa experiência do mau atendimento nos serviços públicos da saúde, corrupção nas materinidades, casas mortuárias bem como pelo “mercenarismo” dos médicos, que, ao invés de prestarem mais atenção ao pobre doente deitado no leito da também doentia cama do hospital público, corria para as ar-condicionadas clínicas privadas, onde, também pessoas encarnadas podiam pagar mais.
Não houve tempo nem oportunidade para se lançar o “pineu” (pneu) ao pescoço do muhivi (ladrão, bandido) do médico. Mais houve, sim, oportunidade para se lançar os “pineus verbais”, isqueiros, gasolina e fósforos do tipo: «Bem feitos, agora é que vão nos tratar bem!» «Dr. Garrido, você é o anjo que caiu do céu para nos salvar, estávamos a morrer»; «com a chegada do Dr. Garrido, tudo mudou, agora somos bem atendidos»; «senhores médicos, trabalhem, deixem de falar»; O Dr. Zilhão não fez nada quando era também Ministro da Saúde, deixe Dr. Garrido trabalhar. Fica calado», etc. Aposto que se estas medidas fossem tomadas num comício popular, perante um pobre « Zilhão» - aqui corporizo toda classe médica, não faltariam insultos e ou até agressões físicas, num autêntico frenesim catárquico.

2. Os Órgãos de Comunicação Social
Igualmente, a publicação dessas medidas pelo Ministro, também não pos indiferente os profissionais da comunicação sicial. Títulos como “Há um mal estar no Hospital Cemtral”; Garrido instala crise no seio dos Médicos “Zilhão, a cara da Oposição do MISAU”não se fizeram esperar. Havia como que um sentimento de “alguém foi apanhado”. E se estivesse na Beira, dir-se-ia, “wa mama “.
Qualquer reacção da classe médica às decisões do Ministro eram liminarmente desconsideradas; como que sendo o estrebucar de um feiticeiro que, depois de apanhado e acusado de ter cometido o crime, insistia em se considerar inocente, mas que a prova da beberragem (mwavi) o punha sem mais nenhuma alternativa de sobreviver: «bebeu o Mwavi e agora veja-se, estás a morrer»!. Grita-se em coro uníssono nas Rádios, Televisões e Jornais. No altar do sacrifício, um homem fuinho, claro, de bata branca a assistir, glorioso. É o Dr. Ivo Garrido. A restabelecer a “ordem, a digidade e a seriedade nos serviços de saúde do país!”.
As palavras do Dr. Igor Vaz (“não nos vejem como bandidos, também somos humanos e gostamos o que fazemos”) servem como a prova da sua culpabilidade: «afinal, sabem que são vistos como bandidos? Então, já o são.
Grita-se: “Pineu, põe pineu!. Viva Garridooooooooooooooooo!. Você é o anjo que caiu do céu para nos salvar!

E as questões
Depois de, à la Carlos Serra, ter reconstituído esse ritual sacrifical importa reflectirmos um pouco acerca do asunto.
Começaria por indagar as razões que estiveram na origem das decisões do Ministro da Saúde no concernente ao cumprimento de 40 horas semanais pelos médicos moçambicanos.
a) Uma vez já sabido que os médicos moçambicanos, mesmo sem esta medida já faziam mais que 60 horas semanais (nos centros urbanos) e muito mais que isso nos Distritos e outros centros de saúde.
b) Uma vez já por ele sabido que não se tratava de ficar “de plantão”, como dirião os brasileiros, oito horas consecutivas mas sim, que tudo dependeria da organização interna de cada unidade hospitalar, mormente quanto à questão de escalas.
c) Uma vez já sobejamente sabido que quanto a este assunto, tanto os médicos como o Ministério estavam de acordo
- Porque razão criou-se tanto alarido na Imprensa? Haverá razões especiais? Se existem, não as conhecemos.
- Tratou-se de mais uma “encomenda” noticiosa? Estou a ser conspirador. Não sabemos.
Quanto ao encerramento das Unidades de atendimento especial, penso que os médicos não têem nenhuma razão de queixa. Exigem que se feche mesmo amanhã.
Quem se beneficiava destes serviços era o Estado, que tirava dos seus ombros mais um encargo financeiro para e por exemplo, pagar mais de oitocentos membros do pessoal serventuário do Hospital Central do Maputo.
Por último, mas não para fechar, uma questão simples:
- O que provocou a ira linchadora do “povo” e dos meios da comunicação social contra a opinião contrária dos médicos: as decisões do ministro ou o conhecimento (ou percepção) que estes tinham em relação ao desempenho do médicos?
- O que provocou a indignação dos Médicos? As decisões do Minstro ou a polvorização denegridora que o assunto mereceu nos meios de comunicação social, combustibilizada pelo comportamento linchador do “povo da TV, Rádio e Jornais?
Por último, uma pergunta e respectiva resposta especulativa:
- Havia razões para que a classe médica se insurgisse contra o anúncio?
Resposta: Sim, havia, mas não fundadas na circular e/ou medidas anunciadas. Tenho forte convicção de que a aversão da classe médica ante ao documento foi exactamente motivada pela sua vacuidade; ou seja, o documento não dava nenhuma orientação nem nova, muito menos inovadora. Pior, fazia o que eles há muito já tinham ultrapassado; mais de quarenta horas por semana. Quanto as clínicas especiais, esse era um mero assunto político-administrativo.
A ira dos médicos foi, no fcato de ter se ido ao um Conselho Hospitalar e de lá ter se saído sem ter se tocado em assuntos que eles consideram cruciais, nomeadamente: o sistema de carreiras e remuneração, condições de trabalho, regime de trabalho, etc., assuntos que o Ministro reconhece sua idoniedade e urgência sobre os quais, estranhamente as instituições tardam em por a mão à obra. Mais, acho também que a ira se deveu ao facto de se ter preterido uma Associação de Médicos num debate cuja presença se afigurava impreterível apesar de, do ponto de vist legal, a sua presença se afigurava dispensável. Há que se fazer um arranjo para acomodar essa situação. Não se deve debater assuntos de uma determinada classe sem que ela esteja representada. Já lá vão os tempos em que se negociavam donzelas contra a vontade desta.
Sinais para o Futuro
Aproveitaria este momento para á guisa de conclusão questionar alguns “castelos de areia” que se construiram em torno do desempenho do Ministro e da sua equipa.
“o ministro tomou boa decisão em ter que abolir o serviço de atendimento especial. Ontem estive com meu pai no HCM (hospital central do maputo), ficou de baixa mas já saiu. O ministro fez bem sim, ao ter obrigado os médicos ficarem das 07 as 15.30 horas”
- Cidadã entrevistada pela TVM.
Há dois anos que o Ministro dirige o sector. Mudanças de vulto aconteceram nos vários hospitais. Verificam-se melhorias, tanto no atendimento aos doentes, como nos aspectos adminstrativos.
1.De que natureza foram as mudanças que influenciaram no melhoramento dos serviços da saúde? Terão sido as de natureza administrativa? Ou política? O mérito está nas novas direcções dos principais hospitais urbanos? O que sabemos sobre os distritos? Foram as pessoas que mudaram? Ou houve mais incentivos ao trabalho? Quais?
2.Concomitante à questão anterior, importa saber: e quanto as relações de trabalho? Os profissionais de saúde estão satisfeitos com o trabalho que ora fazem? Existe um bom relacionamento entre as direcções hospitalares e o pessoal trabalhador? Acima de tudo, AS MUDANÇAS SÃO DE ORDEM ENDÓGENA, no sentido de saber se existe a apropriação (em inglês, ownership) destas mudanças ou estariamos perante o cumprimento do das ordens do chefe?
3. E qual é o quid pro quo? Ou seja, o que é que os médicos e pessoal dos hospitais ganharam com as mudanças? Respeito? Reconhecimento? Melhoria de condições salariais?
4.Por último, uma questão incómoda: qual é a sustentabilidade dessas mudanças? Há condições para torná-las seguras e perpétuas?
5.Não Estaremos a comprimir demais o FOGO?

Comentários

ilídio macia disse…
Boa leitura dos factos, caro Egídio!Força!
Anónimo disse…
Pessoalmente repudio a decisão do Ministro e os contornos em que a mesma foi tomada. UMA DECISÃO POPULISTA, mas que no fundo não vem resolver nem de longe os problemas da saúde pública em Moçambique. MUITO PELO CONTRÁRIO. Conforme referes E.G., é de conhecimento geral que os médicos trabalhavam MAIS DE 40 HORAS SEMANAIS. Então, porquê humilhar publicamente toda uma classe, rotulando-os de preguiços e/ou de marcenarios? Outro falso problema é o levantado em relação às clínicas/atendimento especial nos hospitais públicos. Basta ver que na falta de melhores argumentos para justificar a medida do banimento, ficaram-se em pseudo apelos à moral, ética, etc. SINCERAMENTE. COM QUE ENTÃO O PROBLEMA DA SAÚDE É O MÉDICO???Analise-se OBJECTIVAMENTE os problemas que grassam nos nossos hospitais. Claro que o POVO sempre embandeira em arco com medidas tais. E foi o que aconteceu. MELHOR. Era o que se esperava e aconteceu. Celso.
Egidio Vaz disse…
De facto Gabriel, esta é a minha preocupaão. E também , para ainda esclarecer de uma vez, sou de opinião que o nosso Estado tinha que pagar um pouco mais o funcionário público, sendo os da Saúde, merecedores da prioridade. Já o fizeram com os juízes e magistrados, mas agora tem que se alargar o arco, atacando de uma só ou paulatinamente a questão de salários e outras remuneraçoes bem como condições de trabalho.
Estou a preparar um "orçamento do estado" alternativo. E brevemente demonstrarei como é que os nossos dirigentes ganham mais que todos os funcionários do aparelho do Estado juntos!
Um abraço ao Gabriel Muthisse.
Ao Celso,e Ilídio, concordo convosco.
Um abraço.

Mensagens populares deste blogue

Gwaza Muthini, na forma como a conhecemos hoje é um BLUFF HISTÓRICO.

Três opiniões diferentes sobre o TSEKE

Guias de Marcha